Monday, April 28, 2008




Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.

Eugénio de Andrade

Sunday, April 27, 2008

Dor de Alma

Meu pratinho de arroz doce
polvilhado de canela;
Era bom mas acabou-se
desde que a vida me trouxe
outros cuidados com ela.

Eu, infante, não sabia
as mágoas que a vida tem.
Ingenuamente sorria,
me aninhava e adormecia
no colo da minha mãe.

Soube depois que há no mundo
umas tantas criaturas
que vivem num charco imundo
arrancando arroz do fundo
de pestilentas planuras.

Um sol de arestas pastosas
cobre-os de cinza e de azebre
à flor das águas lodosas,
eclodindo em capciosas
intermitências de febre.

Já não tenho o teu engodo,
Ó mãe, nem desejo tê-lo.
Prefiro o charco e o lodo.

António Gedeão


Zeca Afonso, Era um redondo vocábulo

Wednesday, April 23, 2008


Encantatória

Custa é saber

como se invoca o ser

que assiste à escrita,

como se afina a má-

quina que a dita,

como no cárcere

nu se evita,

emparedado,a lá-

grima soltar.

Custa é saber

como se emenda morte,

ou se a desvia,

como a tecla certa arreda

do branco suporte

a porcaria.

de A Lume

Luiza Neto Jorge




Nick Cave, Far from me

Tuesday, April 22, 2008




Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor -- muito melhor!--
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

Mário Cesariny




Gotan Project, Epoca
Espera

Dei-te a solidão do dia inteiro.
Na praia deserta, brincando com a areia,
No silêncio que apenas quebrava a maré cheia
A gritar o seu eterno insulto,
Longamente esperei que o teu vulto
Rompesse o nevoeiro.

Sophia de Mello Breyner Andresen




Billie Holiday, I'll be seeing you

Monday, April 14, 2008





The Primer



She said, I love you.

He said, Nothing.


(As if there were just one
of each word and the one
who used it, used it up).


In the history of language
the first obscenity was silence.

by Christina Davis





B.B King, The thrill is gone

Sunday, April 13, 2008


One Art

The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.


Elizabeth Bishop





Peggy Lee, Don't Explain

Thursday, April 10, 2008


Recusa

Não terás para
meDarQuotidiano contigoAbrigoCorpo despidoNem
terás para meDarA segurança do
perigoMais do que o gestoOcupadoO afagoO
desmentidoNão terás para me DarO espanto de estar
contigo.

Maria Teresa Horta

Wednesday, April 9, 2008




É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro

Ruy Belo

Monday, April 7, 2008




AutoCrítica

Cesário diz-me muito:gostava de ferramentas,como eu,
e vê-se que para ele o ser feliz
era lançar,originais e exactos,os seus alexandrinos,
empunhar ferramental honesto
cuja eficácia ele sabia que
não vinha da beleza,mas da perfeita
adequação.
Não tem halo,tem elo e o seu encadeado
é o verso habilmente proseado.

(Que feliz eu seria,ó prima,se o Cesário
me tivesse deixado uma garlopa!)
António Nobre,embora seja muito em inho,
é o grande Só que somos nós,
por isso gosto dele(ai de mim,coitadinho!)

(E em conclusão do megalómano discurso,
ó prima,um bilhete-postal para o Pessoa,
a quem devemos todos tanto,a prima inclusive!)

Muito querido Pessoa,saberias agora
que não basta ser lúcido,merda,que não basta
a gente coser-se com as paredes
e cercar de grandes muros quem se sonha,
que não basta dizer basta de provincianos!

in:Feira Cabisbaixa(1965)
Alexandre 0'Neill

Friday, April 4, 2008




Escolha

Entre vento e navalha escolho o vento

entre verde e vermelho aquele azul

que até na morte servirá de espelho

ao vento que por dentro me deslumbra

Entre ventre e cipreste escolho o Sol

Entre as mãos que se dão a que se oculta

Entre o que nunca soube o que já sobra

Entre a relva um milímetro de bruma.


David Mourão-Ferreira

Thursday, April 3, 2008




Havia uma palavra

Havia
uma palavra
no escuro.
Minúscula.Ignorada.
Martelava no escuro.
Martelava
no chão da água.
Do fundo do tempo,
martelava.
contra o muro.
Uma palavra.
No escuro.
Que me chamava.
de Matéria Solar

Eugénio de Andrade

Wednesday, April 2, 2008




Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.

Ricardo Reis