Passamos pelas coisas sem as ver, gastos, como animais envelhecidos: se alguém chama por nós não respondemos, se alguém nos pede amor não estremecemos, como frutos de sombra sem sabor, vamos caindo ao chão, apodrecidos.
Eugénio de Andrade
Sunday, April 27, 2008
Dor de Alma
Meu pratinho de arroz doce polvilhado de canela; Era bom mas acabou-se desde que a vida me trouxe outros cuidados com ela.
Eu, infante, não sabia as mágoas que a vida tem. Ingenuamente sorria, me aninhava e adormecia no colo da minha mãe.
Soube depois que há no mundo umas tantas criaturas que vivem num charco imundo arrancando arroz do fundo de pestilentas planuras.
Um sol de arestas pastosas cobre-os de cinza e de azebre à flor das águas lodosas, eclodindo em capciosas intermitências de febre.
Já não tenho o teu engodo, Ó mãe, nem desejo tê-lo. Prefiro o charco e o lodo.
António Gedeão
Zeca Afonso, Era um redondo vocábulo
Wednesday, April 23, 2008
Encantatória
Custa é saber
como se invoca o ser
que assiste à escrita,
como se afina a má-
quina que a dita,
como no cárcere
nu se evita,
emparedado,a lá-
grima soltar.
Custa é saber
como se emenda morte,
ou se a desvia,
como a tecla certa arreda
do branco suporte
a porcaria.
de A Lume
Luiza Neto Jorge
Nick Cave, Far from me
Tuesday, April 22, 2008
Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada! Supor o que dirá Tua boca velada É ouvir-te já.
É ouvir-te melhor Do que o dirias. O que és nao vem à flor Das caras e dos dias.
Tu és melhor -- muito melhor!-- Do que tu. Não digas nada. Sê Alma do corpo nu Que do espelho se vê.
Mário Cesariny
Gotan Project, Epoca
Espera
Dei-te a solidão do dia inteiro. Na praia deserta, brincando com a areia, No silêncio que apenas quebrava a maré cheia A gritar o seu eterno insulto, Longamente esperei que o teu vulto Rompesse o nevoeiro.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Billie Holiday, I'll be seeing you
Monday, April 14, 2008
The Primer
She said, I love you.
He said, Nothing.
(As if there were just one of each word and the one who used it, used it up).
In the history of language the first obscenity was silence.
by Christina Davis
B.B King, The thrill is gone
Sunday, April 13, 2008
One Art
The art of losing isn't hard to master; so many things seem filled with the intent to be lost that their loss is no disaster.
Lose something every day. Accept the fluster of lost door keys, the hour badly spent. The art of losing isn't hard to master.
Then practice losing farther, losing faster: places, and names, and where it was you meant to travel. None of these will bring disaster.
I lost my mother's watch. And look! my last, or next-to-last, of three loved houses went. The art of losing isn't hard to master.
I lost two cities, lovely ones. And, vaster, some realms I owned, two rivers, a continent. I miss them, but it wasn't a disaster.
Even losing you (the joking voice, a gesture I love) I shan't have lied. It's evident the art of losing's not too hard to master though it may look like (Write it!) like disaster.
Elizabeth Bishop
Peggy Lee, Don't Explain
Thursday, April 10, 2008
Recusa
Não terás para meDarQuotidiano contigoAbrigoCorpo despidoNem terás para meDarA segurança do perigoMais do que o gestoOcupadoO afagoO desmentidoNão terás para me DarO espanto de estar contigo.
Maria Teresa Horta
Wednesday, April 9, 2008
É triste ir pela vida como quem regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
Ruy Belo
Monday, April 7, 2008
AutoCrítica
Cesário diz-me muito:gostava de ferramentas,como eu, e vê-se que para ele o ser feliz era lançar,originais e exactos,os seus alexandrinos, empunhar ferramental honesto cuja eficácia ele sabia que não vinha da beleza,mas da perfeita adequação. Não tem halo,tem elo e o seu encadeado é o verso habilmente proseado.
(Que feliz eu seria,ó prima,se o Cesário me tivesse deixado uma garlopa!) António Nobre,embora seja muito em inho, é o grande Só que somos nós, por isso gosto dele(ai de mim,coitadinho!)
(E em conclusão do megalómano discurso, ó prima,um bilhete-postal para o Pessoa, a quem devemos todos tanto,a prima inclusive!)
Muito querido Pessoa,saberias agora que não basta ser lúcido,merda,que não basta a gente coser-se com as paredes e cercar de grandes muros quem se sonha, que não basta dizer basta de provincianos!
in:Feira Cabisbaixa(1965) Alexandre 0'Neill
Friday, April 4, 2008
Escolha
Entre vento e navalha escolho o vento
entre verde e vermelho aquele azul
que até na morte servirá de espelho
ao vento que por dentro me deslumbra
Entre ventre e cipreste escolho o Sol
Entre as mãos que se dão a que se oculta
Entre o que nunca soube o que já sobra
Entre a relva um milímetro de bruma.
David Mourão-Ferreira
Thursday, April 3, 2008
Havia uma palavra
Havia uma palavra no escuro. Minúscula.Ignorada. Martelava no escuro. Martelava no chão da água. Do fundo do tempo, martelava. contra o muro. Uma palavra. No escuro. Que me chamava. de Matéria Solar
Eugénio de Andrade
Wednesday, April 2, 2008
Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge. Mas finge sem fingimento. Nada speres que em ti já não exista, Cada um consigo é triste. Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas, Sorte se a sorte é dada.