Escrevo-te a sentir tudo isto...e num instante de maior lucidez poderia ser o rio as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata da fotografia poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto ao fogo e deambular trémulo com as aves ou acompanhar a sulfurica borboleta revelando-se na saliva dos lábios poderia imitar aquele pastor ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco morde a sua imobilidade........ habito neste país de água por engano são-me necessárias imagens , radiografias de ossos rostos desfocados mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos repara.....nada mais possuo a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de romã repara.... como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar.....
Al Berto
Adriana Calcanhoto, Devolva-me
Friday, November 7, 2008
De ombro na ombreira vejo no outro lado outro ombro na ombreira
Entre ombros nas ombreiras nenhum assombro: ombros ombro a ombro param ombro a ombreira
Quando tudo escombro ainda todos seremos ombro na ombreira.
Alexandre O'Neill
Tom Waits, Misery is the river of the world
Wednesday, November 5, 2008
É Tarde, Muito Tarde da Noite
É tarde, muito tarde da noite, trabalhei hoje muito, tive de sair, falei com vária gente, voltei, ouço musica, estou terrivelmente cansado. Exactamente terrivelmente com a sua banalidade é o que pode dar a medida do meu cansaço. Como estou cansado. De Ter trabalhado muito, ter feito um grande esforço para depois interessar-me por outras pessoas quando estou cansado demais para me interessarem as pessoas.
É tarde, devia Ter-me deitado mais cedo, há muito que devera estar a dormir. Mas estou acordado com o meu cansaço e a ouvir música. Desfeito de cansaço incapaz de pensar, incapaz de olhar, totalmente incapaz até de repousar á força de cansaço. Um cansaço terrível da vida, das pessoas, de mim, de tudo. E fumo cigarro após cigarro no desespero de estar tão cansado. E ouço música (por sinal a sonata para violino e piano de César Franck, e depois os Wesendonck Lieder) num puro cansaço de dissolver-me como Brunhilda ou como Isolda no que não aceitarei nunca l amor che muove il sole e l altre stelle. Nada há de comum entre esse amor de que estou cansado, e o outro que não ama, apenas queima e passa , e de cuja dissolução no espaço e no tempo em que vivo estou mais cansado ainda. Dissolvam-se essas damas que eram princesas ou valquírias, se preferem, no eterno. Eu estou cansado de não me dissolver continuamente em cada instante da vida, ou das pessoas, ou de mim, ou de tudo. Qu ai-je á faire de l eternel? I live here. Non abbiamo confusion. E aqui é que morrerei danado de cansaço, como hoje estou tão terrivelmente cansado.
Jorge de Sena
The Beatles, Across the universe
Tuesday, November 4, 2008
Pelo sonho é que vamos, comovidos e mudos. Chegamos? não chegamos? Haja ou não haja frutos, pelo sonho é que vamos. Basta a fé no que temos. Basta a esperança naquilo que talvez não teremos. Basta que a alma demos, com a mesma alegria, ao que desconhecemos e ao que é do dia a dia. Chegamos? não chegamos? Partimos. Vamos. Somos. Sebastião da Gama