Se te pareço nocturna e imperfeita Olha-me de novo. Porque esta noite Olhei-me a mim, como se tu me olhasses. E era como se a água desejasse.
Escapar de sua casa que é o rio E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há um tempo. Entendo que sou terra. Há tanto tempo Espero Que o teu corpo de água mais fraterno Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez. E mais atento.
Hilda Hilst
Sunday, April 29, 2007
Salvador Dali, A persistência da memória
Vestígios
noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras
hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se
onde se pode - num vocabulário reduzido e
obcessivo - até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir
apesar de tudo
continuamos e repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva - vamos pela febre
dos cedros acima - até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial
Al-Berto
Saturday, April 28, 2007
Pablo Picasso, Mulher com braços cruzados
Poema em linha recta
Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado, Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Álvaro de Campos
Friday, April 27, 2007
Egon Schiele, Amantes
Assim o amor
Espantado meu olhar com teus cabelos Espantado meu olhar com teus cavalos E grandes praias fluidas avenidas Tardes que oscilam demoradas E um confuso rumor de obscuras vidas E o tempo sentado no limiar dos campos Com seu fuso sua faca e seus novelos Em vão busquei eterna luz precisa
Sophia de Mello Breyner Andresen
Thursday, April 26, 2007
Egon Schiele, Amizade
Quando estamos assim
Quando estamos assim deitados e nus, sem a minha cara saber se é a tua cara à frente dela, parece-me bem que o mundo é uma coisa às escuras, sem importância nenhuma. Dou a volta, rodopio como um artista de circo, estou dentro de uma rotina, quando lavo os dentes e visto o pijama de flanela às riscas sinto-me um miúdo pequeno que desconhece o que é morrer. Chamaste-me sentimental, sentimental é a tua tia.
Helder Moura Pereira
Wednesday, April 25, 2007
Egon Schiele, Amantes
Da grande página aberta do teu corpo
Da grande página aberta do teu corpo sai um sol verde um olhar nu no silêncio de metal uma nódoa no teu peito de água clara
Pela janela vejo a pequenina mão de um insecto escuro percorrer a madeira do momento intacto meus braços agitam-te como uma bandeira em brasa ó favos de sol
Da grande página aberta sai a água de um chão vermelho e doce saem os lábios de laranja beijo a beijo o grande sismo do silêncio em que soberba cais vencida flor
António Ramos Rosa
Tuesday, April 24, 2007
Balthus, A paciência
O amor é o amor
O amor é o amor - e depois?! Vamos ficar os dois a imaginar, a imaginar?..
O meu peito contra o teu peito, cortando o mar, cortando o ar. Num leito há todo o espaço para amar!
Na nossa carne estamos sem destino, sem medo, sem pudor, e trocamos - somos um? somos dois? - espírito e calor! O amor é o amor - e depois?!
Alexandre O´Neill
Monday, April 23, 2007
Marc Chagall, Paisagem azul
As palavras que te envio são interditas
As palavras que te envio são interditas até, meu amor, pelo halo das searas; se alguma regressasse, nem já reconhecia o teu nome nas suas curvas claras.
Dói-me esta água, este ar que se respira, dói-me esta solidão de pedra escura, estas mãos nocturnas onde aperto os meus dias quebrados na cintura.
E a noite cresce apaixonadamente. Nas suas margens nuas, desoladas, cada homem tem apenas para dar um horizonte de cidades bombardeadas.
Eugénio de Andrade
Sunday, April 22, 2007
Amedeo Modigliani, Nu Reclinado
Uma palavra morre Quando é dita — Dir-se-ia — Pois eu digo Que ela nasce Nesse dia.
Emily Dickinson
Saturday, April 21, 2007
Francis Bacon, Figura Sentada
O que esperamos na ágora reunidos?
É que os bárbaros chegam hoje.
Por que tanta apatia no senado? Os senadores não legislam mais?
É que os bárbaros chegam hoje. Que leis hão de fazer os senadores? Os bárbaros que chegam as farão.
Por que o imperador se ergueu tão cedo e de coroa solene se assentou em seu trono, à porta magna da cidade?
É que os bárbaros chegam hoje. O nosso imperador conta saudar o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe um pergaminho no qual estão escritos muitos nomes e títulos.
Por que hoje os dois cônsules e os pretores usam togas de púrpura, bordadas, e pulseiras com grandes ametistas e anéis com tais brilhantes e esmeraldas? Por que hoje empunham bastões tão preciosos de ouro e prata finamente cravejados?
É que os bárbaros chegam hoje, tais coisas os deslumbram.
Por que não vêm os dignos oradores derramar o seu verbo como sempre?
É que os bárbaros chegam hoje e aborrecem arengas, eloqüências.
Por que subitamente esta inquietude? (Que seriedade nas fisionomias!) Por que tão rápido as ruas se esvaziam e todos voltam para casa preocupados?
Porque é já noite, os bárbaros não vêm e gente recém-chegada das fronteiras diz que não há mais bárbaros.
Sem bárbaros o que será de nós? Ah! eles eram uma solução.
Konstantinos Kaváfis
Friday, April 20, 2007
Egon Schiele, Os Amantes
Meu amor meu amor
meu corpo em movimento
minha voz à procura
do seu próprio lamento.
Meu limão de amargura meu punhal a escrever
nós parámos o tempo não sabemos morrer
e nascemos nascemos
do nosso entristecer.
Meu amor meu amor
meu nó e sofrimento
minha mó de ternura
minha nau de tormento
este mar não tem cura este céu não tem ar
nós parámos o vento não sabemos nadar
e morremos morremos
devagar devagar.
Ary dos Santos
Thursday, April 19, 2007
Ariadne Adormecida, Anónimo Romano
CONSOLAÇÃO
Nas ruas da cidade caminha o meu amor. Pouco importa aonde vai no tempo dividido. Já não é meu amor, todos podem falar-lhe. Ele já não se recorda. Quem de facto o amou?
Procura o seu igual no voto dos olhares. O espaço que percorre é a minha fidelidade. Ele desenha a esperança e ligeiro despede-a. Ele é preponderante sem tomar parte em nada.
Vivo no seu abismo como um feliz destroço. Sem que ele saiba, a minha solidão é o seu tesouro. No grande meridiano onde inscreve o seu curso é a minha liberdade que o escava.
Nas ruas da cidade caminha o meu amor. Pouco importa onde vai no tempo dividido. Já não é meu amor, todos podem falar-lhe. Ele já não se recorda. Quem de facto o amou e de longe o ilumina para que não caia?
René Char
Aubery Beardsley, Salomé
ETERNO
Entre uma flor colhida e outra ofertada o inexprimível nada
Giuseppe Ungaretti
Wednesday, April 18, 2007
Ticiano, Ecce Homo
Grito
Não posso já com ervas nem com árvores; Prefiro os lisos, frios mármores Onde nada está escrito.
Meu gosto da paisagem fez-se escuro; Nenhures é o lugar que mais procuro Como homem proscrito.
Eu bem sei: A verdura! A flor! Os frutos! Mas não posso passar de olhos enxutos, Meu campo verde aflito.
Porventura cegaram os meus olhos Porque há nos silveirais flores aos molhos - Tanta flor me tem dito.
Mas eu bem sei que movediços lodos Que são o chão, as lágrimas de todos, Meu coração contrito.
Eu não sei se amanhã será meu dia; Recolho-me furtivo na poesia, Incerto o chão que habito.
Ai de mim! Ai de mim, nuvem medonha! Os homens conheci, bebi peçonha, E é por isso que grito.
Afonso Duarte
Monday, April 16, 2007
René Magritte, Os Amantes
Se eu pudesse dizer-te: - Senta aqui nos meus joelhos, deixa-me alisar-te, ó amável bichinho, o pêlo fino; depois, a contra-pêlo, provocar-te! Se eu pudesse juntar no mesmo fio (infinito colar!) cada arrepio que aos viageiros comprazidos dedos fizesse descobrir novos enredos! Se eu pudesse fechar-te nesta mão, tecedeira fiel de tantas linhas, de tanto enredo imaginário, vão, e incitar alguém: - Vê se adivinhas... Então um fértil jogo de amor seria. Não este descerrar a mão vazia ! (...)
Alexandre O'Neill
Saturday, April 14, 2007
Michelangelo Buonarotti, David (detalhe)
Seus olhos sempre puros
Dias de lentidão, dias de chuva, Dias de espelhos quebrados e agulhas perdidas, Dias de pálpebras fechadas ao horizonte [ dos mares, De horas em tudo semelhantes, dias de cativeiro.
Meu espírito que brilhava ainda sobre as folhas E as flores, meu espírito é desnudo feito o amor, A aurora que ele esquece o faz baixar a cabeça E contemplar seu próprio corpo obediente e vão.
Vi, no entanto, os olhos mais belos do mundo, Deuses de prata que tinham safiras nas mãos, Deuses verdadeiros, pássaros na terra E na água, vi-os.
Suas asas são as minhas, nada mais existe Senão o seu vôo a sacudir minha miséria. Seu vôo de estrela e luz, Seu vôo de terra, seu vôo de pedra Sobre as vagas de suas asas.
Meu pensamento sustido pela vida e pela morte.
Paul Éluard
Wednesday, April 11, 2007
Fernand Khnopff, Ligeia
Ama-me por amor do amor somente Não digas: «Amo-a pelo seu olhar, O seu sorriso, o modo de falar Honesto e brando. Amo-a porque se sente
Minh'alma em comunhão constantemente Com a sua.» Porque pode mudar Isso tudo, em si mesmo, ao perpassar Do tempo, ou para ti unicamente.
Nem me ames pelo pranto que a bondade De tuas mãos enxuga, pois se em mim Secar, por teu conforto, esta vontade
De chorar, teu amor pode ter fim! Ama-me por amor do amor, e assim Me hás de querer por toda a eternidade.
Elizabeth Barrett Browning
Gustav Klimt, Vida e Morte
MORTE Nem temor nem esperança assistem
Ao animal agonizante;
O homem que seu fim aguarda
Tudo teme e espera;
Muitas vezes morreu,
Muitas vezes de novo se ergueu.
Um grande homem em sua altivez
Ao enfrentar assassinos
Com desdém julga
A falta de alento;
Ele conhece a morte até ao fundo —
O homem criou a morte.
William Butler Yeats
Tuesday, April 10, 2007
The Lady of Shalott- Watterhouse
De ambos os lados do rio se encontram
Longos campos de cevada e de centeio,
Que cobrem a planície e encontram o céu;
E pelo campo a estrada corre
Para a Camelot de muitas torres;
E as pessoas vão para cima e para baixo,
Contemplando onde os lírios flutuam,
Há uma ilha mais abaixo,
A ilha de Shalott.
Salgueiros empalidecem, álamos tremem,
Ligeiras brisas, escurecem e tremem
Pela onda que corre eternamente
Pela ilha no rio fluindo até Camelot.
Quatro paredes cinzentas, e quatro torres cinzentas,
Pendem sobre um campo florido,
E a ilha silenciosa cobre de sombras
A Lady de Shalott.
Na margem , velada pelos salgueiros
deslizam as barcas, atravessada
por lentos cavalos, o barco navega, com velas de seda
descendo até Camelot:
mas quem a viu acenar ?
ou de pé em frente às muralhas?
Ou é conhecida em toda a terra,
a Dama de Shalott?
Somente ceifeiros, ceifando cedo,
Por entre a cevada viçosa
Ouvem uma canção que ecoa alegremente
Por entre o rio rio que serpenteia
Até a elevada Camelot;
E ao luar, o ceifeiro cansado,
Empilhando fardos em planaltos arejados,
Escutando, sussurra "esta é fada
" A Lady de Shalott".
Lá ela tece dia e noite
Uma teia mágica com cores alegres.
Ela ouviu um murmúrio dizendo,
Que a maldição cairá sobre ela se continuar a
Olhar para Camelot.
Ela não sabe o que a maldição pode ser,
E assim ela tece continuamente,
E nenhuma outra preocupação tem ela,
A Lady de Shalott.
E movendo-se através de um espelho claro
Que pende diante dela todo o ano,
Sombras do mundo aparecem.
Lá ela vê a estrada se próxima
Serpenteando até Camelot;
Ali a corrente do rio ondula,
Ali a aldeia se agita
e as capas vermelhas das vendedeiras
passam por Shalott.
Ás vezes um grupo de donzelas felizes,
um abade num passo trôpego,
Ás vezes um pastor de cabelos ondulados,
Ou um pagem de vestes escarlates,
passa a caminho de Camelot.
E às vezes através do azul espelho
Os cavaleiros vêm cavalgando dois a dois.
Ela não tem nenhum cavaleiro leal e verdadeiro,
A Lady de Shalott.
Mas em sua teia, ela ainda se delicia
A tecer as mágicas visões do espelho,
Frequentemente pelas noites silenciosas
Um funeral, com plumagens e luzes,
E música passou a caminho de Camelot;
Ou quando a Lua pendia do alto,
Vinham dois jovens amantes acabados de casar.
"Estou quase doente de sombras", disse
A Lady de Shalott.
Á distância de uma seta disparada do quarto dela,
Ele cavalgou por entre os fardos de cevada,
O sol veio ofuscante por entre as folhas,
E ardeu por sobre os bravos membros
Do valente Sir Lancelot.
Um cavaleiro com uma cruz-vermelha, eternamente ajoelhado
Perante uma senhora em seu escudo,
Que brilhava no campo amarelo,
Ao lado da remota Shalott.
O freio com joias brilhava livre
como algumas estrelas que vemos
na dourada galáxia.
Os guizos dos freios soaram alegremente
Enquanto ele cavalgava para Camelot.
E da sua sela emblazonada pendia
um poderoso trompete de prata.
E à medoda que cavalgava a sua armadura se reflectia
à beira da remota Shalott.
No céu azul, sem nuvens
brilhava o cabedal incrustado com jóias sa sela,
O elmo e as penas do elmo,
ardiam juntos, como uma chama,
Enquanto ele cavalgava para Camelot,
como frequentemente, por entre a púrpura noite
por baixo das brilhantes constelações,
a cauda de um meteoro , ardendo,
passa por entre a calma Shalott.
Sua clara fronte brilhou à luz do sol;
Em cascos polidos, seu cavalo de guerra cavalgou;
Debaixo de seu capacete fluiarm
Seus cachos negros como carvão enquanto cavalgava,